Cultura, Kiev

Show da Onuka + NAONI

September 4, 2018

A artista ucraniana Onuka vem fazendo uns shows com a NAONI, uma orquestra nacional de instrumentos folclóricos ucranianos e esse ano eu finalmente consegui vê-los ao vivo. A primeira vez foi no inverno, no belíssimo Centro Internacional de Cultura e Artes, também conhecido como Palácio de Outubro. Esse palácio está localizado na rua Instytutska, do lado da Maidan Nezalezhnosti. Não só foi a primeira vez que vi a apresentação da Onuka com a NAONI, mas foi também a primeira vez que visitei esse palácio e ele é lindíssimo por dentro. Uma perfeita locação para um filme do Wes Anderson.

Porém, as fotos desse post foram feitas em outro show da Onuka+NAONI, uma apresentação gratuita que aconteceu no dia 26/04, data que o acidente de Tchernóbil completou 32 anos. A cantora/compositora Natália Zhyzhchenko foi diretamente afetada por essa tragédia, já que o pai dela trabalhava em Tchernóbil e recebeu uma alta dose de radiação. Em 2016, o acidente nuclear completou 30 anos e Onuka lançou o EP “Vidlik”. A música “1986” faz parte desse EP e faz referência ao ano em que o acidente ocorreu. As duas fotos abaixo são do momento da apresentação dessa música e as projeções do telão são do videoclipe que mostra a vida selvagem que retornou a Tchernóbil após a evacuação dos seres humanos. Você pode assistir o vídeo clicando aqui.

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Onuka canta “We fly like a feather so immune and free” e os animais aparecem no telão no ritmo da batida da música. É lindo, existencial e melancólico. Pra completar toda essa atmosfera, estava chovendo. Foi meio difícil ver o show em meio aos guarda-chuvas, mas fico feliz de ter levado a câmera para eternizar esse momento. Essa dificuldade condiz com a intenção da artista. Assim como Svetlana Aleksiévitch deu voz àqueles que não são escutados em seu livro “Vozes de Tchernóbil”, Onuka faz o mesmo com sua música. É difícil lembrar, mas é importante educar as pessoas para que não aconteça novamente.

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Esse ano, Onuka lançou o disco Mozaїka e uma das faixas se chama “Arka” em homenagem ao sarcófago que foi construído para cobrir o reator número 4 e ficou pronto em novembro de 2016. É uma arca como a de Noé que vai preservar a nossa existência pelos próximos 100 anos. Transcrevo aqui as palavras da própria Natália “esta faixa instrumental concisa é uma tentativa de transmitir uma captura de infância e maravilha diante de um edifício gigantesco e monumental e, ao mesmo tempo, admirar a escala de pensamento e dedicação das pessoas que o construíram. ARKA soa como Debussy e música de desenhos da Disney ao mesmo tempo”. Escrevi sobre a construção desse monumento à esperança aqui, justamente porque queria registrar esse momento histórico que passou praticamente despercebido.

O novo disco da Onuka conta com várias faixas em ucraniano, mas os títulos não estão escritos em alfabeto cirílico, com exceção de uma letra. A letra Ї, que aparece no título do álbum, é a mais ucraniana do alfabeto e quando eu cheguei aqui, era justamente por essa letrinha que eu identificava se as coisas estavam escritas em russo ou em ucraniano. Lógico que isso foi intencional e o trabalho da Onuka é todo permeado por esses detalhezinhos encantadores. Fico tão feliz de ter escolhido aprender ucraniano porque eu consigo captar essas pérolas e entender muito melhor todo o conceito do trabalho dessa artista extremamente sensível e talentosa.

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A língua faz parte da identidade cultural de uma nação e se ela se propõe a ser a voz da Ucrânia, lógico que faz mais sentido cantar as músicas na língua oficial do país. Isso fica claro na música “Golos” que significa justamente “voz” em ucraniano. Transcrevo novamente as palavras da própria Natália: “O mundo é tecido de contradições. A mídia e os políticos multiplicam-nos, dividindo pessoas, famílias e a sociedade como um todo. Quando há muita agressão, manipulação e mentiras no mundo, a lava da informação torna-se um ruído branco sem sentido. Através desta parede de som é importante ouvir uma voz humana. A voz de cada um de nós. ‘Nós temos uma voz, não somos burros’. Aqueles que têm algo a dizer não devem ficar em silêncio. Aqueles que buscam – conhecem a verdade. A verdade é sempre a mesma. Nossa ferramenta mais forte é a voz”. E essa música começa com uma bateria que lembra som de batalha e a capa do disco é toda branca com o título escrito em vermelho, cor de sangue. A mulher tem SANGUE NOS OLHOS! POW, POW, POW! Se não for pra lacrar, ela nem sai de casa haha.

Fico bem emocionada com o trabalho da Onuka e poderia escrever muito mais, porém o post ficaria imenso. O álbum de estréia dela foi lançado em outubro de 2014, justamente na época que cheguei em Kiev, mas só fui parar para ouvir alguns meses depois e escrevi sobre isso nesse post. Contei também sobre a primeira vez que vi uma apresentação dela ao vivo aqui. O estilo de música que ela faz fala muito comigo, por isso enalteço mesmo seu trabalho. Ela é bem famosa aqui na Ucrânia, é convidada pra fazer várias publicidades e vem ganhando reconhecimento em outros países, especialmente depois do Eurovision. Ela tem formação clássica, mas faz um som extremamente moderno usando instrumentos folclóricos ucranianos. Os arranjos das músicas com a orquestra são belíssimos e é impossível não se emocionar. É uma delícia ver todo aquele pessoal vestido com as roupas típicas tocando, cantando e dançando durante as músicas mais animadas.

Espero que eu consiga ver Onuka se apresentando ao vivo mais vezes e sigo tentando aprender a cantar todas as músicas dela em ucraniano. Espero também que as pessoas consigam entender o que os artistas querem dizer enquanto eles ainda têm liberdade para se expressar.

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