Que cinema e música são uma grande inspiração e referência para as imagens que crio acho que não é novidade pra ninguém, até porque elas já foram várias vezes comparadas ao trabalho do cineasta Wes Anderson. O mais interessante é que o trabalho dele nunca foi uma referência consciente pra mim, mas claro que fico lisonjeada com a comparação, já que ele tem uma grande preocupação estética e sabe trabalhar muito bem com as cores, as simetrias e o lúdico, elementos que eu uso bastante também.
Outro elemento que eu busco na hora de editar as fotos, é dar um clima de sonho. E se tem um cineasta que trabalha muito bem essa temática, esse cara é o David Lynch. Quando fiquei sabendo que meus amigos estavam com esse projeto musical todo trabalhado em Twin Peaks, imediatamente eu quis fazer um ensaio com eles, pois teria liberdade para trabalhar minha criatividade, coisa que não posso fazer com os clientes (preciso ser mais “quadrada”). Resolvi colocar as fotos numa sequência que fizesse sentido para explicar o processo criativo por trás delas. Algo parecido com o que eu fiz nesse ensaio de 2014.
Tanto eu quanto meus amigos/modelos vivemos os anos 90 na pele, então a gente tem umas referências muito parecidas. O figurino da Andressa foi inspirado no estilo kinderwhore, popularizado por Courtney Love. Claro que Andressa suavizou o look com a delicadeza da coroa de flores, as sapatilhas de bailarina e a maquiagem bem leve. Já o Fábio segue um estilo Rivers Cuomo/Grahan Coxon. Quanto ao conceito do ensaio, procurei trabalhar a dualidade entre sonho e realidade e o ensaio tem dois momentos que se contrastam, representando os momentos de lucidez e de mergulho nos lados obscuros da mente que são acessados durante os sonhos.
O nome do projeto musical é uma frase que um dos personagens de Twin Peaks fala e eles usaram um sampler dessa fala na faixa que abre o EP, intitulado “The Black Lodge”. Na série, o black lodge representa esse lado mais obscuro da mente, o inconsciente. Tudo que acontece lá é meio fragmentado, surreal, fora de ordem e a minha intenção com as fotos abaixo foi representar isso. A entrada do black lodge fica na terra, na floresta e a foto abaixo representa esse momento que eles estão prestes a entrar nesse mundo obscuro.
As fotos abaixo representam o black lodge e eu usei a TV como fonte de luz, algo muito presente no trabalho do David Lynch. Adoro como a TV ficou refletida nos olhos deles e eles estão com um olhar perdido, hipnotizados. Lynch gosta muito de música e ela sempre tem muito destaque em todos os trabalhos dele, casando perfeitamente com o que ele quer dizer na cena. Foi justamente por conta da música que comecei a prestar atenção no seu trabalho, já que ele sempre faz colaboração com artistas muito legais. Acabei ficando fascinada por toda a atmosfera dark, surrealista, o humor nonsense e toda a sensação de estranhamento que ele intencionalmente provoca no espectador. É meio que um quebra-cabeças que você tem que montar enquanto assiste. Não sei nem como ele conseguiu que uma série tão fora do convencional como Twin Peaks fosse transmitida na TV no início dos anos 90.
Na foto acima usei uma luz de estrobo como fonte e gostei mais dos resultados com a luz azul que trouxe uma unidade e também remete a uma certa melancolia que está presente nas músicas do That Gum U Like. Luzes piscantes são utilizadas em Twin Peaks como um recurso que causa um desconforto e eu sabia que o Fábio tinha um estrobo, então fiz questão de usar no ensaio. Nas fotos abaixo, pedi para eles deitarem no chão e fiz as fotos de cima para baixo usando a luz da TV como fonte novamente. Usei um filtro na lente para dar essa ideia de mente fragmentada novamente e pedi para eles ficarem bem neutros, sem expressão pra dar um ar meio mórbido em referência à cena onde Laura Palmer é encontrada morta e à pergunta que permeia todo o seriado, “quem matou Laura Palmer?”.
A primeira parte do ensaio foi feita no fim da tarde com luz natural, minha zona de conforto. Mesmo assim, ainda usei luz e sombras mais marcadas para lembrar que esses contrastes estão presentes no mundo real. Quando escureceu, usei iluminação artificial e mais saturação, algo bem diferente do que costumo fazer. Ainda assim, minha representação do mundo obscuro ainda ficou suave, seguindo a linha estética do som do projeto. Quis fazer esse ensaio exatamente para sair da minha zona de conforto e criar algo mais dramático, criativo e conceitual. A tatuagem de unicórnio contribuiu demais para essa ideia de fantasia, algo que não faz parte do mundo real. Fiquei bem satisfeita com o resultado final. Adoro como as fotos onde eles estão deitados podem ter várias interpretações. Eles estão dormindo de olhos abertos? Estão mortos? Estão sonhando acordados? Estão com insônia?
Admiro demais a liberdade artística do David Lynch e como ele não se importa nada se vão pensar que ele é muito louco. Ele dá asas à imaginação dele sem dó e sempre explorando as obscuridades, mas se divertindo ao mesmo tempo porque ele tira sarro das coisas de uma maneira muito própria. Recentemente saiu um vídeo dele em parceria com a Stella McCartney para o canal Nowness, onde ele traça um paralelo entre cinema e meditação transcendental. Essa colaboração foi feita para apoiar os trabalhos da David Lynch Foundation que tem como objetivo ajudar pessoas que sofrem com traumas e prevenir uma epidemia de stress, depressão e ansiedade. Inclusive, ele veio aqui em Kiev para inaugurar uma unidade dessa fundação com o objetivo de ajudar pessoas que precisam conviver com stress pós-traumático após terem participado dos conflitos no leste do país.
Se você ficou curios@ para escutar as músicas do That Gum U Like, clique aqui ou procure no Spotify. Me contem nos comentários se gostaram de saber sobre o processo criativo por trás desse ensaio, o que acham do trabalho do David Lynch, se possuem alguma experiência com meditação ou se gostariam de começar a meditar. Afinal, são tempos difíceis para os sonhadores e a tecnologia pode fazer muito mal para quem tem tendências a sofrer de distúrbios de ansiedade.
Você é uma fotógrafa absurdamente talentosa, Alê. Também adoro o Lynch e amei saber do processo criativo desse ensaio, de entender e conseguir visualizar o que você queria transmitir. Essas fotos com a luz azul ficaram maravilhosas e altamente Lynchnianas, rs. Amei!
Obrigada pelo elogio e por comentar, Bárbara! A maioria das pessoas não entendem o propósito, acham que todo fotógrafo é apenas apertador de botão. Senti a necessidade de explicar porque meus amigos adoraram as fotos, mas nem sei se eles captaram a minha interpretação dos elementos lynchnianos. Mas fico feliz que você tenha conseguido visualizar, já valeu a pena ter explicado. Beijos!
e esse ensaio ficou tão lindo ♥ a vontade de voltar a fotografar… 🙂
Obrigada! <3 Volta a fotografar, cria uns projetos, anota umas ideias e faz. Beijos!
Parabéns pelo ensaio, muito bom mesmo! Beijo do pai.
Obrigada, pai! Beijo :-**
[…] parte de um ensaio que fiz no ano passado com minha amiga e fotógrafa Jacqueline Lisboa. Contei nesse post sobre o ensaio inspirado em Twin Peaks que fiz com a dupla também no ano […]