Mês passado, li o aclamado livro da jornalista Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015. Ela nasceu na Ucrânia em 1948, mas viveu boa parte da sua vida na Belarús (ou Bielorrússia). O livro traz depoimentos de pessoas que tiveram suas vidas completamente transformadas pelo acidente nuclear ocorrido em abril de 1986. Em 2016, a editora Companhia das Letras o publicou pela primeira vez no Brasil e eu tenho algumas críticas a fazer a essa edição. Me pareceu que a editora quis pegar carona no hype do Nobel e publicou o livro sem atualizações, o que induz a um raciocínio equivocado por parte dos leitores. A primeira publicação de Vozes de Tchernóbil é de 1997, ou seja, a edição brasileira foi publicada quase 20 anos depois e, de todas as resenhas que assisti no You Tube, nenhuma mencionou isso. Convenhamos que em 20 anos muitas coisas aconteceram, não é mesmo?
Provavelmente, muitas pessoas que foram entrevistadas pela autora nem estão mais vivas. A nota histórica que abre o livro está tão desatualizada que se torna completamente desnecessária. O projeto do abrigo para cobrir o reator número 4 citado nessa nota ficou pronto em novembro do ano passado (o vídeo abaixo é um documentário da BBC sobre a construção do abrigo) e não há nenhuma menção sobre isso. Daí em muitas resenhas que assisti as pessoas falam como se o reator estivesse lá abandonado com a mesma cobertura construída às pressas em 1986. A editora simplesmente traduziu o livro do jeitinho que ele foi publicado em 1997 e acrescentou somente o discurso que a autora fez na cerimônia do Prêmio Nobel, em dezembro de 2015. Acho que um livro de não-ficção merece um trabalho mais cuidadoso no que diz respeito a notas mais esclarecedoras e atualizadas.
Outro ponto que reparei nas resenhas que assisti, é que as pessoas não têm muita noção do tamanho de Tchernóbil. A região (não uma cidade como alguns pensam) é enorme e pega uma parte da Ucrânia e uma parte da Belarús. Várias vilas foram evacuadas após o acidente. Na foto que abre o post você vê as placas com os nomes das vilas que foram evacuadas. A Belarús foi bastante afetada porque no dia do acidente o vento soprava para o norte e o país recebeu uma quantidade absurda de fumaça radioativa. Por isso faz todo sentido que Svetlana tenha coletado e reunido os depoimentos em um livro, já que ela é uma dessas testemunhas vivas e Tchernóbil faz parte de sua história.
O título do livro também é apropriadíssimo, pois ela deu voz às pessoas de Tchernóbil que foram silenciadas por muito tempo a ponto desse assunto ter virado um tabu mesmo aqui na Ucrânia. Já presenciei as reações de alguns ucranianos em relação ao assunto e percebo que é um tema delicado porque muita gente foi afetada pelo acidente de alguma maneira, tem algum amigo ou familiar que trabalhou na descontaminação ou tem alguma doença relacionada à radioatividade. Alguns acham meio absurdo ter visita turística na região.
A maneira como a autora costurou os depoimentos também casa perfeitamente com o título do livro porque é como se você estivesse ouvindo um coral e o fato dela ter começado e terminado o livro com depoimentos super dramáticos de mulheres, remete às sopranos com suas vozes altas e agudas, como um grito que ficou abafado por muitos anos. O vídeo abaixo é sobre a experiência da artista ucraniana Onuka que passou uma semana em Tchernóbil no ano passado. Seu pai foi um dos liquidadores que trabalharam na região e ela compôs uma música chamada “1986”. Lembre-se de clicar em CC (closed captions) para acionar a legenda.
Confesso que fiquei meio decepcionada logo no início da leitura por conta da nota histórica desatualizada e aí veio o primeiro depoimento bem emocional e BEM dramático. Pessoas mais sensíveis já param de ler o livro aí (conheço gente que fez isso). Fiquei apreensiva se todos os depoimentos seriam nesse tom, mas depois ele se torna um pouco mais ameno. Inclusive, uma coisa bem interessante são as piadas que aparecem em alguns depoimentos. Isso demonstra o espírito do pessoal daqui, muito parecido com o dos brasileiros que riem da própria desgraça. Certamente uma estratégia de sobrevivência.
Quando John Steinbeck e Robert Capa visitaram a União Soviética em 1947, foram questionados várias vezes se os EUA lançariam uma bomba lá como fizeram no Japão. Foi interessante perceber que essa questão continuava presente em 1986: “Teria sido mais fácil nos acostumar à situação de uma guerra atômica como a de Hiroshima, pois sempre nos preparamos para ela”. A quantidade de radionuclídeos lançados ao ar pelo acidente de Tchernóbil foi equivalente a 350 bombas atômicas como a que lançaram sobre Hiroshima, ou seja, os soviéticos que sempre se prepararam para uma ameaça externa, acabaram atingidos por algo que eles próprios provocaram.
“Hoje já se sabe. Já se escreveu sobre o ritmo acelerado com que se construiu a central atômica de Tchernóbil. Construiu-se à maneira soviética. Os japoneses levantam instalações como essa em doze anos, mas aqui fazemos em dois, três anos.” O que o livro não conta, e que eu só fiquei sabendo quando visitei Tchernóbil em 2015, é que os reatores 1, 2 e 3 continuaram funcionando após o acidente. Antes de 1986, já havia ocorrido um acidente no reator nº 1, mas a informação só se tornou pública anos depois. Depois da tragédia de 1986, houve um incêndio em uma das turbinas do reator nº 2. Esse reator foi desativado em 1991, após a independência da Ucrânia. O reator nº 1 só foi desativado em 1996 e (PASMEM) o reator nº 3 continuou funcionando até o final do ano 2000.
Essa leitura me fez refletir sobre muitas questões e é difícil escrever sobre ele em um post porque daria para conversar sobre os temas levantados por horas. É impossível terminar esse livro sem pensar sobre o mundo, a vida de maneira geral e sobre sua própria vida. Entrar em contato com o medo que essas pessoas sentiram de algo que elas não entendiam e não viam é angustiante. “(…) fomos educados na ideia de que o átomo soviético para a paz não era tão perigoso quanto a turfa e o carvão”. Muitos erros foram cometidos por pura ignorância e eu fiquei impressionada ao perceber o quanto a Belarús e a Ucrânia eram extremamente rurais há 30 anos. As pessoas viveram o terror de não saber se ainda haveria um futuro e perceberam anos mais tarde que foram completamente enganadas pelo governo que escondeu as informações e não tomou as devidas providências para “não criar pânico”.
O vídeo acima é uma entrevista com Svetlana Aleksiévitch que foi uma das convidadas principais da FLIP 2016. O vídeo é longo, mas muito interessante porque ela fala sobre vários temas atuais. Vou terminar o post por aqui porque já está enorme, mas é realmente impossível escrever sobre esse tema em poucas linhas. Se você já leu esse livro, faça ele circular. Svetlana não ganhou o Nobel à toa. Essas vozes realmente precisam ser ouvidas. O poder em mãos erradas é muito perigoso e, nesse caso, o mundo esteve em perigo, não só a Belarús e a Ucrânia. O resto do mundo só ficou sabendo o que tinha acontecido quando a fumaça radioativa foi detectada na Suécia, dias depois do acidente. A Europa Oriental vivia sob um regime que mentia deliberadamente e escondia informações de seu próprio povo. Impossível não refletir sobre a história recente e os dias atuais após conhecer o que essas pessoas viveram e sentiram. Leitura mais do que recomendada.
Olá Alessandra, gostei muito da tua review deste livro. Fiquei a adorar esta autora depois de ler “O Fim do Homem Soviético”, livro este que me marcou bastante. Ando já há algum tempo para ler o “Vozes de Tchernóbil” que foi lançado aqui em Portugal o ano passado, mas ainda não tive oportunidade pois estou a ler outros livros. Acho que vou gostar muito, só é pena que não esteja atualizado, é realmente uma grande falha. Quando puder vou ver se a versão daqui também está desatualizada. Beijinhos **
Oi Sandra! Quero muito ler “O fim do homem soviético”. Depois me conta aqui como ficou a versão de Portugal. Beijinhos.
Que post incrível, Ale! Fiquei curiosa pra ler o livro, obrigada pela indicação. Acho que a gente não tem mesmo noção do tamanho da região até ver algo assim. :/
Obrigada, Katarina! Se você ler, me conta depois as suas impressões.
Muito informativa sua resenha! Esse livro me tocou DEMAIS, são tantas as questões a serem refletidas. Duas coisas me impressionaram: o modo como o regime lidou com o acidente, e a relação visceral do povo das vilas com a sua terra. Mas o forte do livro é a sensibilidade com que a autora traz os relatos das pessoas, a começar pelos títulos dos capítulos, super poéticos. Enfim, uma puta ESCRITORA essa mulher. Agora tô lendo um livro de um húngaro sobre a primeira guerra mundial. Outro chute no estômago, afff
São mesmo muitas questões a serem refletidas e eu fico impressionada do quanto de gente que faz uma leitura superficial desse livro. Eu não me impressionei com a forma como o regime lidou com o acidente porque eu já sabia e essa relação do povo com a terra é bem abordada no documentário “Babushkas de Chernobyl”. Ela realmente mereceu o Nobel. Vou deixar para ler o “A guerra não tem rosto de mulher” depois, estou lendo um mais leve agora.
Tb recomendo o livro da Svetlana sobre as mulheres russas na segunda guerra. Mas esse é mais cru, bem mais pesado.
Excelente post, excelente review. E sim, esse será o meu próximo livro. Você me convenceu! 🙂
Concordo contigo nessa questão das informações atualizadas, ainda mais tratando-se de fatos históricos. E como deve ser difícil abordar esse assunto, principalmente para aqueles que viveram na pele os impactos do acidente. Retornarei aqui para ver os vídeos.
“Alguns acham meio absurdo ter visita turística na região.” – eu não sei o que pensar sobre isso. Ao mesmo tempo que tenho muita curiosidade de conhecer o lugar, fico com aquele sentimento de estar “explorando a tragédia alheia”. Você visitou, não foi? Se sentiu incomodada com isso?
Abraço!
Eu visitei, mas só depois de assistir muitos documentários e ter certeza que era seguro visitar. Não acho que seja explorar a tragédia alheia. Não me senti incomodada porque foi um acidente, não foi algo feito de propósito como os campos de concentração. É um assunto que divide opiniões. E eu só tomei conhecimento de que algumas pessoas achavam absurdo ter visita turística lá depois que eu já tinha ido. Mas acho importante que as pessoas saibam que esse lugar existe e que conheçam os perigos da radioatividade. Depois me conta como foi sua leitura. Abraços!
Alê, que post maravilhoso e informativo! Eu fiquei sabendo desse livro essa semana, quando vi uma indicação em um blog que eu sigo. Vou já coloca-lo na minha lista de leitura desse ano, mas achei uma pena as coisas que falou sobre a editora… deveriam mesmo ter atualizado os fatos antes da publicação. Beijos.
[…] cores das abelhas que são consideradas seres sábios. Lembrei imediatamente de um trecho do livro Vozes de Tchernóbil, onde um dos entrevistados diz que as abelhas não saíram de suas colméias por dias quando […]
Alessandra, gostei muito do seu texto e da forma com que você defende a necessidade desse livro circular, habitar as casas e as vidas das pessoas. Foi o mesmo que senti, inclusive foi o primeiro livro que li e senti que era efetivamente universal. Considero que qualquer pessoa no mundo precise ler o que ocorreu, pois o livro evidencia bem mais do que um acidente nuclear, ele fala de relações políticas, de todo um abalo psicossocial que modifica a vida das pessoas, sua relação com o passado, o presente e o futuro, além dos danos biológicos e ambientais. Além disso, concordo com o que você disse sobre ausência de uma preocupação editorial em fornecer informações mais recentes e realizar acréscimos que são relevantes para compreender a realidade atual na região e seus desdobramentos, especialmente por uma questão ética com o leitor. Li os três livros lançados pela editora Companhia das Letras da autora e “Vozes de Tchernóbil” foi o mais impactante no aspecto emocional, por mais que “A guerra não tem rosto de mulher” tenha tido um efeito semelhante, porém com temos no imaginário e na consciência coletiva mais presente os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial me senti visitando um território mais familiar, apesar dos inúmeros horrores vividos por aqueles corajosas mulheres. Já a leitura de “O fim do homem soviético” segue um tom mais político. Há a presença do trágico, mas ocorre de forma mais dispersa ao longo do livro que é o maior em número de páginas e em testemunhos. Após a leitura desses livros é impossível não me voltar para a história e literatura russas. Vou procurar ler Alexander Issaiévich Soljenítsin e “Contos de Kolimá” para começar.
Exatamente, essa questão das relações políticas que afetam diretamente a vida das pessoas foi a mensagem que eu achei mais importante de circular. As pessoas precisam tomar consciência do quanto a política interfere na vida privada delas. Obrigada por comentar, James.
[…] lançada pela editora Companhia das Letras e um vídeo de uma entrevista com a autora. Clique aqui caso queira ler o […]